Pesquisa em educação.
O olhar do nadador: do individual ao coletivo

Zaia Brandão

1. As matrizes de um trabalho coletivo de pesquisa

        Na perspectiva da metáfora do nadador (Elias: 1994, p. 46), e portanto sem a pretensão de uma análise de caráter mais geral da pesquisa em educação, procuro, através da reconstrução da minha trajetória, refletir sobre a importância do trabalho em equipe no aprendizado do ofício de pesquisador.
        Na década de 70, participei de duas experiências de trabalho de pesquisa em equipe: uma sobre estudantes com problemas de aprendizagem coordenada por Enaide Barros (psicologia PUC-Rio) e outra sobre os perfil dos vestibulandos à época dos vestibulares unificados (Cesgranrio). Começava assim uma trajetória de pesquisa que desde o início focalizou a escola e o sistema escolar, ângulo do qual constitui meu olhar sobre a pesquisa em educação.
        As duas experiências com equipes multidisciplinares permitiram vivenciar as dificuldades de articular perspectivas disciplinares ou orientações teórico-metodológicas diferentes: problemas de diálogo entre tradições disciplinares diferentes, disputas de pontos de vista, consolidação dos resultados. Hoje tenho clareza que muitos destes problemas tinham raízes não apenas em dificuldades técnicas, mas também nas lutas concorrenciais próprias ao campo científico (Bourdieu: 1984)
        Em que pese essas dificuldades, estas experiências favoreceram a percepção da parcialidade/provisoriedade do conhecimento, assim como do potencial aberto pelas diferentes escalas de observação1 , a partir das quais os objetos de pesquisa podem ser construídos. Os problemas de aprendizagem, por exemplo, foram analisados de uma perspectiva pedagógica, sociológica, psicológica e médica2 . No caso da pesquisa sobre os vestibulares/vestibulandos a equipe se constituiu incorporando profissionais responsáveis pela elaboração das provas, pedagogos, psicólogos, sociólogos e economistas que se dedicavam à análise da aprendizagem das bases sociais e escolares do desempenho nos vestibulares. Esta experiência, que durou pouco mais de um ano, apesar de gerar intensos debates e interessantes pontos de vista sobre os condicionantes da escolarização (condições de sucesso e fracasso escolar, hierarquias escolares, efeitos sociais da feminilização das carreiras, mobilidade intergeracional etc.) não viabilizou como a anterior uma produção de caráter coletivo. Além do hermetismo de algumas análises, das divergências na interpretação dos dados estatísticos, das especificidades da construção das grades de análise das provas, o maior problema no momento da articulação dos pontos de vistas encontrava-se nos embates teórico-metodológicos, ficando evidente em alguns casos os “monismos metodológicos assinalados por Bourdieu (1984).
        O campo da educação - ao final da década de 70 e durante toda a década de 80 - dominado pela perspectiva marxista, pelo status adquirido pela obra A Reprodução (Bourdieu e Passeron: 1975) e, estimulado por toda uma tradição de estudos anglo-saxões voltados para a análise da seletividade social dos sistemas escolares (em que a referência ao Relatório Coleman se tornou obrigatória) tomou o problema das desigualdades escolares com o principal desafio à pesquisa da educação.
        Trabalhos anteriores na tradição da psicologia, como por exemplo, os de Rogers sobre ensino não diretivo, os de A. S Neill sobre a sua experiência de Summerhill (a escola onde se cultivava a liberdade sem medo) - já haviam desestabilizado a crença no valor incondicional da escola. Na perspectiva psico-social, Ana Maria Poppovic na Fundação Carlos Chagas desenvolveu uma série de pesquisas sobre problemas da alfabetização que a levou a elaborar o conceito de marginalidade cultural, que mais recentemente foi de certa forma retomado sobre novos ângulos abrindo toda uma linha de problemas e investigações que se desdobram hoje, no campo das perspectivas multi, inter e trans culturalistas.
        Em uma outra escala, Paulo Freire começava sua obra focalizando a alfabetização dos adultos e a educação das classes populares fazendo emergir o tema da cultura e, dentro deste o da centralidade da linguagem. A linguagem e a cultura já eram problemas amplamente investigados pela sociologia anglo-saxã (Williams, Lawton, Bernstein, Labov) com ampla repercussão na construção da Nova Sociologia da Educação (Young: 1971). Paralelamente de um ângulo mais filosófico, o ensaio de Ivan Illich (1970) propondo a desescolarização da sociedade articulado a uma ampla produção dos “educadores radicais” americanos (Goodman, Reimmer, Postman etc.) iam aprofundando uma crítica radical à escola que questionava radicalmente, entre os pesquisadores da educação, a idéia de que a democratização do acesso à escola resolveria o problema da educação das classes trabalhadoras.
        No rastro de todas essas referências, e com base no rebate destas investigações na sociologia da educação francesa, ao final da década de 70, a partir dos textos de uma disciplina que lecionei no mestrado, organizei uma coletânea que foi publicada pela Editora Francisco Alves3 . Os títulos dos diferentes capítulos que compõem a coletânea sintetizam o tipo de preocupações que marcariam boa parte das investigações no campo da educação entre nós, na década seguinte:
  • Um desafio à democratização do ensino: o fracasso escolar (Monique Vial)
  • Pesquisas sobre as relações entre linguagem e escola (Denis Lawton)
  • Uma crítica ao conceito de “educação compensatória” (Basil Bernstein)
  • Desvalorização e autodesvalorização na escola (Liliane Luçart)
  • A liberação da escola, Deve-se suprimir a escola ? (Bernard Charlot)
  • O debate pedagógico (Rosiska Darcy de Oliveira e Pierre Dominice)
  • Sobre A Reprodução de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (Renaud Sainsaulieu)
        De certa forma estas leituras e os debates que desencadearam foram as matrizes a partir das quais fui construindo as minhas escolhas, definições e redefinições na árdua tarefa da aprendizagem do ofício de pesquisador.

2. Um programa de pesquisa sobre a escola básica.

        No início da década de 80 coordenei, no Departamento de Educação da PUC-Rio, o Programa de Pesquisa sobre a Escola Básica4 . O objetivo era articular uma série de enfoques sobre a escola básica (como qualificávamos as séries iniciais, hoje 1o segmento do ensino fundamental) tentando combinar a perspectiva histórica, pedagógica, sócio-demográfica e política numa visão menos segmentada dos processos de escolarização. Os primeiros esforços de organização de um sistema público de ensino e de formação de professores na década de 20, os processos de alfabetização e as possíveis causas do fracasso escolar, que atingia sobretudo os estudantes do setor público, assim como uma comparação entre as características do setor público e privado no sistema escolar brasileiro eram os problemas com que começávamos a explorar a temática da escola básica. Pesquisa documental, observações nas escolas e em sala de aula, assim como estatísticas educacionais constituíram o “jogo de escalas” (Revel) com os quais desenvolvemos as primeiras análises.
        A interrupção do financiamento deste programa impediu a sua continuidade institucional, inviabilizando inclusive a produção de um relatório com a articulação da experiência. Entretanto os pesquisadores envolvidos deram continuidade às suas pesquisas divulgando parcialmente os resultados. Clarice Nunes dedicou-se nas décadas que se seguiram à História da Educação e à obra de Anísio Teixeira, Candido Gomes aprofundou suas investigações sobre os sistemas educacionais numa perspectiva sócio-política, a pesquisa de Sonia Kramer foi gradualmente se encaminhando para o estudo da pré-escola e, posteriormente, para o campo da educação infantil. O programa de pesquisa da escola básica esteve, portanto, ao início da década de 80, na origem da experiência de trabalho coletivo de pesquisa de alguns dos professores do Departamento de Educação da PUC-Rio.
        Entre os eventos, autores e influências mais marcantes dessa época, na perspectiva do nadador, destacam-se: a 1a CBE e, nela, particularmente a provocação de Dermeval Saviani com o texto Escola e Democracia, que desencadeou um importante e frutuoso debate sobre a escola pública e os limites da proposta de democratização do ensino compreendida com ampliação de vagas e acesso à escola. Um outro texto que muito influenciou a pesquisa sobre os processos escolares foi o texto de Guiomar Namo de Mello Fatores intra-escolares na seletividade do 1o grau. As pesquisas de Terezinha Carraher e Ana Maria Schielemann (1988) divulgadas no livro Na vida dez, na escola zero, contrastando a cultura escolar com a cultura das crianças das camadas populares foi outro dos marcos. A fecundidade de trabalhos empíricos bem fundamentados teoricamente para avançar na reflexão sobre a produção social do fracasso escolar foi sendo gradativamente afirmada e destacou a incapacidade da escola de levar em conta as características sócio-culturais da clientela das camadas populares5 .
        Um conjunto bastante significativo dos debates da 1a CBE tiveram um cunho de reação política à repressão e ao autoritarismo político em suas repercussões na sociedade e seus reflexos no âmbito das políticas educacionais especialmente na legislação e na distribuição de recursos, que definiam as reais prioridades para além dos discursos dos gestores. Neste contexto, um tema igualmente importante que ampliou o impacto e a hegemonização da matriz marxista no campo da educação foi o das relações entre educação e trabalho, no bojo dos debates sobre a profissionalização do ensino médio e da reforma universitária propostas pelo regime autoritário. A relação capital-trabalho e a funcionalização do ensino médio e da reforma universitária aos interesses do capital foram exploradas à exaustão. Gaudêncio Frigotto, Acácia Kuenzer e Lucília Machado tornam-se, senão leituras obrigatórias, fontes secundárias da literatura marxista, que gradativamente dominou a pesquisa na educação. A publicação da tese de Cláudio Salm (1980) polemizando a leitura marxista de Frigotto, foi para mim um momento importante de desestabilização da lógica marxista corrente na pesquisa em educação, que eu já vinha problematizando, e que eu viria a tematizar, pelo ângulo da História, no momento do doutorado.

3. Do multidisciplinar ao disciplinar

        A ampliação dos programas de pós-graduação naquele panorama temático e teórico, fomentou os debates sobre as relações entre educação (escolar) e a construção de uma sociedade democrática, que desde as primeiras décadas do século XX, com os Pioneiros da Escola Nova, não havia sido retomado com tanta força, entre nós. Neste sentido, a pesquisa de Luiz Antônio Cunha (1975) publicada sobre o título de Educação e Desenvolvimento Social no Brasil, tornou-se uma referência obrigatória para estes debates e significou um avanço importante na direção de uma maior atenção para a leitura dos fenômenos empíricos, em uma época em que os discursos teóricos sobrepunham-se aos fenômenos concretos da sociedade e da educação6 .
        Retomando pesquisas pioneiras da sociologia da educação entre nós, senti-me retratada pelo polêmico texto de Luiz Pereira (1961) em que criticava o pensamento pedagógico dos educadores. A ausência de uma formação disciplinar já vinha me confrontando, com inquietante freqüência, com os limites da minha formação universitária para o trato dos complexos fenômenos envolvidos na análise dos processos de escolarização e relações sociais.
        A passagem pelo IUPERJ – na procura de uma formação disciplinar - foi uma época de consolidação da valorização da pesquisa empírica e do questionamento dos “quadros teóricos” que determinavam previamente o curso e os resultados das investigações. Nesta época com Anna Maria Baeta e Any Dutra desenvolvemos, por encomenda do INEP, o primeiro “estado da arte” sobre evasão e repetência no Brasil. Dois resultados chamaram a atenção de nossa equipe: o pouco investimento no estudo específico de um dos principais problemas do nosso sistema escolar - a evasão e repetência - e a precariedade da produção. De um levantamento inicial de 1706 títulos - cobrindo a produção acadêmica sobre a temática no período de 71/81 – selecionamos 428 trabalhos (25%) que poderiam se enquadrar em termos bastante amplos na temática da evasão e repetência. Desse total selecionamos 80 pesquisas que avaliamos diretamente e das quais selecionamos um amostra intencional de 27 pesquisas, escolhidas como as que ofereciam subsídios para uma política educacional que procurasse melhorar o fluxo escolar pelo enfrentamento das principais causas do fracasso escolar ao início do 1o grau, onde se concentravam a evasão e a repetência.
        O desenvolvimento deste estudo reiterou a minha percepção, de que as pesquisas na maioria das vezes repetiam chavões teóricos ou postulações político-ideológicas, que pouco acrescentavam em termos de produção de conhecimento.
        A divulgação do estudo encontrou uma recepção bastante favorável à época: Costa Ribeiro, com base coortes de idade da PNAD, questionou os cálculos da evasão escolar da análise que construímos com as estatísticas do MEC e aprofundou a análise da “pedagogia da repetência”. Darcy Ribeiro, que convocou-nos para inúmeros encontros com o objetivo de debater os resultados da investigação que, segundo a sua interpretação, justificavam a criação dos CIEPs - escolas em tempo integral. Foi a partir desta época, que fui consolidando a convicção de que a pesquisa, embora possa servir à definição de políticas, deve ter como prioridade a produção do conhecimento, e não diretamente a intervenção. A definição de um problema de pesquisa corre sérios riscos se vier a reboque de objetivos políticos7 .
        Meu doutorado desde o primeiro projeto visava aprofundar a crítica à produção do conhecimento no campo da educação. Um primeiro projeto voltava-se para a reconstrução da leitura de Bourdieu desenvolvida pelo campo da educação. O investimento no estudo dos principais trabalhos do autor logo levou-me a perceber que a tarefa estaria muito acima das minhas possibilidades. A hegemonização da matriz marxista na área, em seus desdobramentos sobre a interpretação do Movimento da Escola Nova, tornou-se o problema de minha tese de doutorado. Novamente a experiência coletiva foi importante para a minha formação: com Ana Waleska Mendonça, Isabel Lelis e Ana Chrystina Mignot, contemporâneas do processo de doutorado, procuramos no Departamento de História da PUC-Rio as ferramentas de que carecía para as investigações no campo da História da Educação.

4. As origens do SOCED

        Ao término da tese, apresentei ao CNPq o projeto “Do texto à história de uma disciplina: a sociologia da educação que se pode ler no Educação e Desenvolvimento de J. Roberto Moreira”. Aprovado, o projeto gradativamente vai incorporando à pesquisa alguns pós graduandos que estavam sob minha orientação e, um pouco depois, a professora Ana Waleska de Mendonça que havia concluído sua tese associou-se ao grupo.
        Esta pesquisa associava as duas áreas que me haviam exigido um esforço de familiarização no processo de doutoramento – história e sociologia – e reabria uma antiga curiosidade:

A necessidade de entender o que produz esse sentimento de diferença, de ineditismo, ruptura e peculiaridade, a respeito de Educação e Desenvolvimento no Brasil, motivou-me a tomar esse texto como objeto de estudo, no objetivo de compreende um campo (o da Sociologia da Educação) um segmento da intelectualidade (os educadores) e um tempo (ass décadas de 50/60). (Extrato do projeto apresentado ao CNPq em 1993)

        Esta investigação esteve na origem de dois grupos de pesquisa do Departamento de Educação: o SOCED (Grupo de Pesquisas em Sociologia da Educação) e o grupo de História da Educação coordenado pela professora Ana Waleska Mendonça. Por trás do livro de Moreira foi aparecendo o dinamismo da pesquisa produzida no CBPE, criado por Anísio Teixeira em meados da década de 50, com base em uma intensa relação entre o campo da educação e as áreas disciplinares8 .
        O estudo das fontes de Moreira e do projeto de articulação da pesquisa ao planejamento da educação, liderado por Teixeira, permitiu-nos identificar toda uma tradição de pesquisa que parecia não ter influenciado o desenvolvimento da pesquisa em nossa área. Como já assinalado anteriormente, um dos principais problemas da pesquisa em educação, em nossa leitura, estava no pouca familiarização dos pesquisadores da área com os debates, as referências e as características da produção das ciências fonte da educação: história, sociologia, etc.

A função primeira de uma cultura teórica (que não se mede pelo número de “footnotes” que acompanham os textos) é permitir que se leve explicitamente em conta esse espaço teórico, isto é, o universo de posições cientificamente pertinentes num dado estágio do desenvolvimento da ciência. (Bourdieu:2004, p. 44)

        A contribuição do CBPE à história das Ciências Sociais no Brasil já vinha sendo tematizada no campo das Ciências Sociais9 . Embora entre os pesquisadores da educação fosse reconhecida a importância deste Centro, não contávamos ainda com uma pesquisa que se tivesse debruçado sobre o conjunto de pesquisas aí produzidas. Este foi o recorte do projeto que se seguiu, também aprovado pelo CNPq, e que trabalhou sobre o material divulgado na Revista Educação e Ciências Sociais do CBPE. Esta “tradição esquecida”, como a qualificamos, foi amplamente retomada na década de 90. Aliás do ângulo do nadador, parece-me que esta década marcou a ampliação do diálogo com as áreas disciplinares, a revalorização dos trabalhos empíricos e um certo refluxo nos quadros teóricos que serviam muito mais de moldura ideológica, do que hipóteses de trabalho a serem testadas e reconstruídas no processo de pesquisa.
        A questão da precariedade da pesquisa em educação já vinha sendo tematizada por alguns pesquisadores experientes: Aparecida Joly Gouveia (1970, 1974), Amélia Goldberg (1981) e José Maria Pires Azanha (1992). Nossa própria experiência com o trabalho indicava que apesar do aumento da produção de pesquisas, a qualidade em geral encontrava-se muito aquém do que seria de esperar tendo em vista o crescimento dos cursos de pós graduação para a formação de pesquisadores. Do meu ponto de vista, a ênfase excessiva na “originalidade” das pesquisas de mestrado e doutorado tem contribuído para a superficialidade e a fragmentação da pesquisa em educação. A atividade de pesquisa, em praticamente todas as áreas do conhecimento, é hoje e cada vez mais atividade de equipe; a melhoria e rapidez dos canais de divulgação das pesquisas (CDs de Congressos e Seminários), os periódicos e os bancos de dados on line tornaram, até mesmo a simples revisão do estado do conhecimento, uma tarefa coletiva. Além disso, a articulação dos âmbitos macro e micro social exige uma formação cada vez mais plural dos pesquisadores da área, o que tende a ser facilitado nos grupos de pesquisa.
        O trabalho desenvolvido no SOCED, com as reuniões semanais de debate, trocas de informações, divisão de trabalho, consolidação das revisões bibliográficas etc. começou a apresentar os seus primeiros resultados em dissertações e teses bem mais fundamentadas no trabalho coletivo. A proposta de Bourdieu de “por em jogo as coisas teóricas” tornou-se uma máxima que passou a orientar o trabalho da equipe10 .

5. Da História da Educação à Sociologia da Educação: os processos de construção dos objetos de pesquisa.

        Ao final da década de 90 o SOCED passou a desenvolver pesquisas cujos problemas vinculavam-se aos processos de socialização e escolarização. O apoio obtido através das Bolsas de Produtividade em Pesquisa do CNPq assim como do Programa Cientistas do Nosso Estado da FAPERJ foi da maior importância para a melhoria das condições de nosso programa de formação de pesquisadores em sociologia da educação.
        A revalorização dos surveys como instrumentos de avaliação dos sistemas de ensino desde a última década e, a utilização de modelagens estatísticas mais adequadas ao caráter estratificado da distribuição da população escolar significou um passo importante na direção de uma análise mais acurada das relações entre os processos de socialização, as condições de infra-estrutura escolar, de qualificação de professores e a escolarização. Por sua vez, os “jogos de escalas” têm estimulado o debate, em bases cada vez mais sistemáticas, sobre o valor agregado pelas escolas à história escolar dos estudantes.
        Após décadas de investimento no estudo das escolas públicas e dos processos de escolaridade das camadas populares, optamos nesta fase por investigar os processos de escolarização das elites e camadas médias. Inspirada nos trabalhos de Nogueira (1996/2000) Romanelli (1986/2000) e Almeida (1999/ 2002), a equipe, nesta época enriquecida com a participação de Isabel Lelis, focalizou a escolarização dos filhos das elites acadêmicas (Brandão e Lelis 2003), tendo como principal referência o arsenal teórico-metodológico proposto no corpus da obra de Pierre Bourdieu. Alguns colegas questionaram o recorte sobre as elites escolares, entretanto tínhamos a convicção do interesse em compreensão dos processos de produção da “qualidade de ensino” em situações e ambientes socialmente favorecidos. Recentemente, o intenso debate - provocado por um convite de Eliane Souza e Silva (CEASM) para que expuséssemos os resultados da mais recente pesquisa sobre a produção de elites escolares - com cerca de 60 educadores que atuam em diversos programas educacionais e culturais junto a 20 escolas públicas no complexo da Maré evidenciou os desdobramentos positivos desta pesquisa para o trabalho com as camadas populares.
        Ao investigarmos simultaneamente nove escolas de prestígio da cidade do Rio de Janeiro, delineando as especificidades institucionais, as práticas pedagógicas familiares e escolares, assim como o perfil sócio-demográfico-cultural dos agentes educacionais (pais, alunos, professores) procuramos ampliar as condições de interpretação sobre os processos de produção e reprodução da imagem de qualidade de ensino nessas instituições. Esta meia década de investigação neste recorte já vem oferecendo alguns que sinalizam determinadas hipóteses para se repensar políticas de promoção de qualidade de ensino11 .
        Em síntese, o olhar do nadador (parcial e provisório, reafirmo) me leva a enfatizar:
  • a fertilidade do trabalho em equipe;
  • o equívoco na insistência na busca, a todo o preço (e a meu ver muito alto) da originalidade das pesquisas na pós-graduação,;
  • a consciência da importância dos “jogos de escala” (diversidade da pesquisa proposta por Creso pela manhã) proporcionando o debate entre abordagens e óticas teórico –metodológicas diferentes;
  • a provisoriedade do conhecimento exigindo atenção para o investimento em revisões de pesquisas;
  • a necessidade de um diálogo permanente entre pares, que contraste os diferentes resultados e interpretações produzidas a partir das diferentes escalas dos complexos problemas da educação;
  • e, por fim, como prevenção a uma tendência muito problemática da pesquisa em educação, que tenhamos em mente a preciosa auto-crítica de Magda Soares em seu Meta-memória – Memórias (1991) ao dizer: eu não via o que era, via o que (acreditava) devia ser...

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NOTAS
1A respeito consultar: Jacques Revel Os jogos de escalas. Rio de Janeiro: Editora da FGV.
2Além de um médico com formação psiquiátrica, participavam da equipe duas psicólogas (uma de formação cognitivista e behaviorista e outra de formação psicanalítica com enfoque na família) uma assistente social, uma pedagoga.
3Zaia Brandão org.(1979) Democratização do ensino: meta ou mito ? Rio de Janeiro: Francisco Alves.
4Projeto Integrado de Pesquisa financiado pelas agências INEP/CNPq/CAPES. Compunham a equipe na condição de pesquisadores, Clarice Nunes, Cândido Gomes, Sonia Kramer. Alunos de pós-graduação incorporaram-se à equipe, em uma das primeiras experiências coletivas de pesquisa em nosso departamento.
5No início da década de 90 Maria Helena Patto publica A produção do fracasso escolar que sintetizava os conhecimentos sobre o tema nesta perspectiva, cujo sucesso editorial consubstanciou-se em duas novas edições nos dois anos seguintes.
6Ainda que se possa fazer críticas à leitura de Cunha nesta obra, e eu a faço, sobretudo ao 1o capítulo (onde desenvolve uma interpretação do liberalismo em educação) o autor trabalhou intensamente na construção de dados empírico-teóricos e produziu um trabalho de fôlego em que dialogou com as estatísticas oficiais e a legislação educacional, contextualizando os problemas do sistema escolar na sociedade brasileira nos tempos do regime militar.
7Consultar a este respeito, o capítulo 8 do livro ao final da década de 70 e durante toda a década de 80) Pesquisa em Educação. Conversas com pó-graduandos (Brandão: 2002) onde aprofundo essa análise.
8Consultar o texto de Anísio Teixeira “Ciência e arte de educar”, no qual ele defende enfaticamente a necessidade do domínio disciplinar para a pesquisa me educação, numa clara crítica à ausência d formação disciplinar dos educadores também assinalada por Luiz Pereira no início da década de 60. Consultar também o trabalho apresentado por Luiz Antônio Cunha no XV encontro anual da ANPOCS comentando que já se havia feito “mais sociologia da educação do que hoje”
9Consultar na bibliografia ao final deste texto: Mariani (1982) e Corrêa (!987 e1988)
10Ver a respeito o texto elaborado no início da década de 90: “A teoria como hipótese” (Brandão: 2002)
11Os resultados deste investimento coletivo podem ser acompanhados no Boletim do SOCED no endereço eletrônico www.soced.pro.br.